ESCONDERIJO

eu optei pela amnésia auto-sugerida. aqui dentro só o eco e outro dia eu joguei tudo fora e quebrei os vidros e me machuquei até esquecer a dor e até o porque da dor, eu me escondi no escuro e agora ouço os passos. o medo paralisa o tempo. aperto os olhos e tapo os ouvidos com as mãos em concha, a cabeça baixa entre os joelhos e a nuca que tão curva dói. eu respiro o ar quente entre as pernas encolhidas. canto pra dentro da cabeça o balbuciar do que seria a letra de uma cantiga que eu adorava mas agora esqueci. como esqueci tudo. o tempo. o medo. o segredo sujo. a cor da mobília. esqueci desejo, polidez, bom senso, estética. apatia, libido, ridículo e ética. esqueci o princípio e a curiosidade de saber o fim. não me procuro, desde então, nos espelhos, molduras vazias, nas fotos desfocadas. não me encontro nos reflexos das retinas. mas me vasculhando por hábito, acho esboços, projetos, manifestos esquecidos que foram perdendo o nexo, convicções e ideologias que foram perdendo argumentos, sentimentos sublimes e pueris que foram ficando piegas. eu nem me despeço com algum pesar disso tudo, peço apenas aos demais, que não me reconheçam, que me deixem passar sem seus olhares de soslaio e seus bom dias entre dentes. eu não quero ter que lhes sorrir ou insultar. nem mesmo apenas pedir que me deixem passar.

-->





ALÉM DO LIMITE
A primeira vez que vi Limite (1931), obra única de Mário Peixoto, fiquei maravilhada, embora confesse, não ter entendido muita coisa.  Apenas do pouco que pude apreender, a narrativa, ou a ausência dela, causou-me algum estranhamento.  E a beleza da sucessão de imagens que se passara diante dos meus olhos, um profundo êxtase.  Não estava preparada para a profusão de significados que impregnam aqueles fotogramas, nem a maneira como reverberariam em minha sensibilidade anestesiada na era do videoclipe.  Hoje, entreguei-me, inconsciente: só então pude sentir a película permeada de poesia.  Um tempo único de narrativa poética. O kine-poema de Vertov era inteiro sobre Limite, na exata proporção em que Limite é inteiro sobre o ser humano.  O ser humano dilacerado, à deriva com seus medos e culpas, remando em círculos com um único remo.  Limite é todo sobre a inexistência do tempo.  Essa ilusão rítmica a que a humanidade se agarra como que a um último remo, como se sempre tivéssemos uma última chance.  E nos ensina que o andamento do tempo pode ser diferente pra cada um. Muitos podem não entender o andamento de Limite, mas ainda que não entendam, certamente encontram familiaridade.  Porque se trata de um tempo orgânico, visceral e alheio a relógios, impossível de fracionar, posto que não pode se contar em segundos.  Pra ver Limite é preciso abraçar a afirmação tácita da não existência de tempo. O tempo nada mais é que um fator de pressão e coação, nossas algemas imaginárias, sem chaves pra redenção.  A humanidade vive sob o jugo do tempo algoz que inventou. O tempo, que não passa de uma inconcretude metafísica, é esse Limite que nos impomos.  Faz de nossas vidas nau à deriva, sem fuga possível...  Impossível um mergulho impune: captar a essência de Limite é um despertar da consciência.  Limite é uma advertência.


Tarde de 21 de janeiro de 2007, após exibição de Limite na Caixa Cultural/RJ.

Nenhum comentário: