PSYCHO


Atormentada, suporto sua ausência cruel que nunca se confirma imaginando que você me persegue. Obcecado. Obsceno. Segue meus passos com aguda precisão e mesmo que olhando de soslaio não o possa ver, posso pressentir sua presença às minhas costas. Sei que esse arrepio que me percorre a coluna até a medula é seu olhar gélido fixo na minha nuca. Procuro os becos escuros, as ruelas mais soturnas e desertas e caminho a passos lentos de modo a perceber o som dos seus passos. Eu me demoro pela noite perdida, dando voltas e inventando trajetos tortuosos em minha débil fuga onde o que mais quero é ser alcançada. E quando chego em casa exausta, é impossível acender as luzes. Improvável que tranque a porta. Entre o anseio e o receio, eu tomo banho sob a tensa amplitude do seu olhar espião. Deito-me insone, sobressaltada pela possibilidade da sua presença, atrás da cortina, debaixo da minha cama. Eu me concentro no silêncio em busca da sua respiração. Sinto sua mão truculenta que ávida rompe o escuro e me toca a nuca com o polegar e apóia meu rosto lívido nos dedos, sua língua percorrendo a curva da minha orelha. Num movimento brusco, me vira e firmemente me puxa pelo quadril contra seu corpo algoz e me abre as pernas trêmulas. Imobilizada. Sem esboço de reação, não consigo gritar, nem poderia me debater. Porque eu desejo cada hematoma e quero todas as marcas de cada um dos seus dentes, o rastro encarnado das suas unhas na minha pele. Seviciada. Torpe, entregue. O rosto abandonado na sua barba, a mão inerte sobre seu peito. Apenas suspirando contida a cada pequenina perversidade. Refém do seu abraço cativeiro. Descanso em seu corpo sepulcro.

FRAGMENTO DE AUTO-RETRATO



Às vezes me desconheço:
Sou verso, inverso e avesso.

Às vezes me desconexo!
Com doce, tequila, sexo...

Às vezes me reconheço.
Me relembro, depois esqueço.

Às vezes me recomeço...




AILES DU DÉSIR


"Asas do Desejo" (Win Wenders).

Diáfana e volátil
Como as mágicas e os poemas
Jou-jou, mon ami est très jolie
Um estado de encantamento
Que me faz falta
Um sorrir se evaporando por aí...

Volta e meia ela se vai
Mas ela volta!
Petit volant
É um vai e vem o seu viver!

BEBOP A LULLABY


É meu menino. Arteiro e falante. Tão prosa e galante, meu amado infante. Curioso e criativo, esperto, ávido, vivo. Nada lhe escapa à vista, tudo lhe salta aos olhos! Caminho de formiguinhas, lua cheia, teia de aranha, plantinha, trovão, pedra, caramujo, arco-íris, beija-flor. Quer descobrir cada coisa, pergunta, define, elabora...  Desenhando seu mundo a traço colorido de giz. Mundinho de massinha e papel picado, colagens de memórias mágicas e vivências felizes. Cantigas e bolhas de sabão. Cosquinha de rolar no chão. Sorriso que acende estrelinhas, lusco-fusco de risadinha. Pezinhos saltitantes, dedinhos inquietos. Pela sala-playground corre meu corisquinho radiante, pula-pula na poltrona, tenta tocar o céu ignorando o teto. Upa-upa, almofada-cavalinho, pó-co-tó pangarezinho e segue serelepe inventando um caminho. Contando suas próprias histórias, prosas louquinhas, fanfarronices e tantas filosofices que cambalhoteiam na sua caixolinha de idéias mirabolantes. Meu pequeno maior amor do mundo.


SEM PALAVRAS! Minilogue / Hitchhikers choice (short version)

COMO DIZER "QUERO TE CONHECER"




não pergunte as horas - pergunte o sentido da vida
o que ele sente e se duvida da existência da felicidade
se gostaria de caminhar na areia num fim de tarde
se lê Rimbaud, ouve jazz ou samba
se viu a última exposição no MAM
e o que acha do seu sorriso
se lhe acompanharia em uma viagem pelo litoral
até, quem sabe, Canoa Quebrada
onde tem uma vila de pescadores
onde a gente esquece o tempo
e que por isso você não perguntou as horas


DO DESEJO

meu desejo não é apenas desejo
mais que isso: é brusco, é instinto
quase ninguém o sabe, pois eu minto
e deita-se sobre quase tudo que vejo


satisfazê-lo dói-me tudo por dentro
louco, insaciável, nunca se me acalma
dilacera-me a pele, rasga-me a alma
e põe-se a corroer-me ainda mais no centro

entrego-me inglória, já não luto contra isso
e por essa entrega fútil pago um alto preço
de uma angústia que sei que não mereço
de um saber inútil que permanece omisso

mascaro com poesia e etéreos risos
essa razão do meu ser e do não-ser
meu desejo é destes desejos me desfazer
E traçar então desejos mais precisos

ESCONDERIJO

eu optei pela amnésia auto-sugerida. aqui dentro só o eco e outro dia eu joguei tudo fora e quebrei os vidros e me machuquei até esquecer a dor e até o porque da dor, eu me escondi no escuro e agora ouço os passos. o medo paralisa o tempo. aperto os olhos e tapo os ouvidos com as mãos em concha, a cabeça baixa entre os joelhos e a nuca que tão curva dói. eu respiro o ar quente entre as pernas encolhidas. canto pra dentro da cabeça o balbuciar do que seria a letra de uma cantiga que eu adorava mas agora esqueci. como esqueci tudo. o tempo. o medo. o segredo sujo. a cor da mobília. esqueci desejo, polidez, bom senso, estética. apatia, libido, ridículo e ética. esqueci o princípio e a curiosidade de saber o fim. não me procuro, desde então, nos espelhos, molduras vazias, nas fotos desfocadas. não me encontro nos reflexos das retinas. mas me vasculhando por hábito, acho esboços, projetos, manifestos esquecidos que foram perdendo o nexo, convicções e ideologias que foram perdendo argumentos, sentimentos sublimes e pueris que foram ficando piegas. eu nem me despeço com algum pesar disso tudo, peço apenas aos demais, que não me reconheçam, que me deixem passar sem seus olhares de soslaio e seus bom dias entre dentes. eu não quero ter que lhes sorrir ou insultar. nem mesmo apenas pedir que me deixem passar.

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ALÉM DO LIMITE
A primeira vez que vi Limite (1931), obra única de Mário Peixoto, fiquei maravilhada, embora confesse, não ter entendido muita coisa.  Apenas do pouco que pude apreender, a narrativa, ou a ausência dela, causou-me algum estranhamento.  E a beleza da sucessão de imagens que se passara diante dos meus olhos, um profundo êxtase.  Não estava preparada para a profusão de significados que impregnam aqueles fotogramas, nem a maneira como reverberariam em minha sensibilidade anestesiada na era do videoclipe.  Hoje, entreguei-me, inconsciente: só então pude sentir a película permeada de poesia.  Um tempo único de narrativa poética. O kine-poema de Vertov era inteiro sobre Limite, na exata proporção em que Limite é inteiro sobre o ser humano.  O ser humano dilacerado, à deriva com seus medos e culpas, remando em círculos com um único remo.  Limite é todo sobre a inexistência do tempo.  Essa ilusão rítmica a que a humanidade se agarra como que a um último remo, como se sempre tivéssemos uma última chance.  E nos ensina que o andamento do tempo pode ser diferente pra cada um. Muitos podem não entender o andamento de Limite, mas ainda que não entendam, certamente encontram familiaridade.  Porque se trata de um tempo orgânico, visceral e alheio a relógios, impossível de fracionar, posto que não pode se contar em segundos.  Pra ver Limite é preciso abraçar a afirmação tácita da não existência de tempo. O tempo nada mais é que um fator de pressão e coação, nossas algemas imaginárias, sem chaves pra redenção.  A humanidade vive sob o jugo do tempo algoz que inventou. O tempo, que não passa de uma inconcretude metafísica, é esse Limite que nos impomos.  Faz de nossas vidas nau à deriva, sem fuga possível...  Impossível um mergulho impune: captar a essência de Limite é um despertar da consciência.  Limite é uma advertência.


Tarde de 21 de janeiro de 2007, após exibição de Limite na Caixa Cultural/RJ.